A ciência explica que no
cérebro de um disléxico houve uma deslocação de neurónios, com certas
competências na sua área de excelência, para o outro hemisfério. Em
entrevista ao EDUCARE.PT, Helena Serra, presidente da Associação
Portuguesa de Dislexia (DISLEX,) desmistifica algumas ideias sobre este
distúrbio.
Atualmente sabe-se qual a génese do problema: o cérebro do disléxico lê por um caminho feito pelo hemisfério direito, especializado em tudo o que são exigências visoespaciais, mas não nos sons da linguagem. Razão pela qual a dislexia não tem cura. Helena Serra, presidente da Associação Portuguesa de Dislexia (DISLEX), tem explicado isso vezes sem conta, alertando, antes, para o que é possível fazer: "Podemos treinar algumas competências, tornando o aluno mais consciente das suas falhas e armando-o de defesas muito melhores que lhe permitem ir à cautela abordar aquela palavra com determinado grafema ou fonema."
Investigadora na área da educação especial e professora coordenadora jubilada da Escola Superior de Educação de Paula Franssinetti, no Porto, Helena Serra tem dedicado pessoal e profissionalmente a sua vida à compreensão da dislexia. Autora de cadernos reeducativos pedagógicos e com um longo currículo no diagnóstico e intervenção em alunos disléxicos, tem lutado para que o sistema de ensino não comprometa os seus projetos de vida. Por indesculpável desconsideração das suas necessidades de aprendizagem: "Um disléxico não tem a mesma base neurológica de competência porque simplesmente o seu cérebro é especial. Não o podemos culpar, nem acusar de falta de trabalho, pelo contrário, estes alunos trabalham duramente."
Recentemente perdeu a batalha pela possibilidade de os alunos sinalizados com dislexia realizarem os exames nacionais com os apoios educativos previstos no seu plano educativo individual. Medidas "simples", considera a investigadora, mas que permitiriam aos disléxicos algo tão fundamental como iniciar as provas no mesmo ponto de partida dos restantes colegas. Mais tempo para efetuar o exame. Leitura de enunciados. Recurso apenas a uma prova oral ou mesmo uso de meios tecnológicos para substituir a escrita manual. E possibilidade de consulta de tabelas com fórmulas e tábuas. Eram algumas das soluções acordadas durante o ano letivo pelas equipas educativas, que acompanham os alunos disléxicos nas escolas, que o Ministério da Educação e Ciência (MEC) decidiu retirar na época de exames.
Apesar dessa derrota, Helena Serra acredita poder ainda ganhar a guerra contra o desconhecimento da problemática. E como a dislexia entrou na ordem do dia, em nome da associação que preside, pediu uma audição no MEC "para em conjunto pensar alto e partilhar saberes".
Educare.pt (E): Que razões levaram a DISLEX a pôr em causa as regras estabelecidas pelo MEC para a realização dos exames nacionais?
Helena Serra (HS): Não podemos estar de acordo com as regras estabelecidas este ano pelos cortes que implicaram. Primeiro, no ensino básico era possível a realização de exames ao nível da escola, agora só em casos aprovados pelo júri de exames - ultra excecionais -, e não para o problema da dislexia. Segundo, indo a exame - feito ao nível de escola ou nacional -, a criança disléxica, tendo o processo formalmente organizado, tinha direito a várias medidas de adequação da sua avaliação, previstas no seu plano educativo individual (PEI), agora não. Por haver a "Ficha A", um instrumento que descreve o tipo de erros e alterações que aluno faz e informa o corretor para não os pontuar, o MEC veio dizer que os alunos disléxicos já estavam salvaguardados, mas isto significa uma grande confusão. Essa ficha, da minha autoria, foi um instrumento criado há muitos anos para os exames do 12.º ano, desceu para os do 11.º, depois o Governo adoptou-o no 9.º ano e assim por diante, à medida que os exames se foram tornando obrigatórios. Mas uma coisa é a "Ficha A", outra é o elenco de medidas de resposta, em função daquele tipo de erros, que no terreno cada equipa de educação especial vai definir para aquela criança.
E: Que tipo de medidas?
HS: Se a criança interpreta mal, leva mais tempo a ler porque tem de o fazer duas e três vezes para conseguir apanhar o sentido. Qual é a medida que isto precisa? No PEI tem de vir dito que a criança precisa de mais tempo para o teste, porque vai usar várias leituras e isto não se compagina com o relógio e os minutos dados para a realização da prova. Outro exemplo: a criança ainda que lhe sendo dado mais tempo continua a ter dificuldades na interpretação. Qual é a medida no terreno? Leitura do texto pelo professor vigilante em voz alta. É isto que não está previsto pelo MEC. Ou seja: a criança andou apoiada no ano letivo nos testes sumativos, leram-lhe o enunciado, etc., porque o seu PEI assim exigia. E, em abril, a um mês dos exames mudam-se as regras? É contra isso que nós estamos.
E: Nas orientações fornecidas pelo MEC é dito expressamente que o aluno tem de ser capaz de autonomamente fazer o exame. Isto não será uma postura de exigência?
HS: Acredito que haja uma postura do Governo de todo e qualquer estudante ter um nível de Português e de Matemática satisfatório ou nunca mais saímos destes insucessos e destas estatísticas vergonhosas. É uma postura de exigência e entendo que, à partida, essa ideia esteja na base destas alterações. Mas o ministro tem de aplicar a ideia a quem pode responder a ela. Os alunos disléxicos estão preparados para ler. Provavelmente um dia quando forem arquitetos vão fazer um design que outro cérebro sem dislexia não faria. Os disléxicos são mais criativos, têm ideias brilhantes, mas podem escrever a palavra projeto com u na primeira sílaba ou então escrever porjeto. Porque o seu cérebro altera-lhes as coisas deixando-os inseguros sem saber se o que escrevem está bem daquela maneira ou seria de outra.
E: As alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 3/2008 prejudicam as crianças disléxicas?
HS: O Decreto-Lei n.º 319/91 tinha uma linguagem mais permissiva e capaz de englobar conceitos que agora não são englobados. A dislexia é uma necessidade educativa especial (NEE). A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 3/2008, que entrou em vigor a 7 de janeiro, é considerar elegível para medidas de apoio pela educação especial - por professores especializados -, crianças com alterações na sua capacidade de aprendizagem e participação muito mais significativas. Primeiro, diz a lei, de caracter permanente, mas aí não havia problema porque a dislexia é permanente. Segundo, quando a lei diz com impacto significativo na aprendizagem e da participação, também não exclui a dislexia, porque alguns casos são muito gravosos.
Qual foi mesmo o prejuízo? Excluir aquelas crianças cujo tipo de dislexia não é tão acentuado e, portanto, aprenderam a ler, com muita dificuldade, com muito atraso. E que, provavelmente até leem com alguma fluência, mas não interpretam logo o que lêem e têm de ler duas e três vezes para conseguir tomar o sentido da frase. Normalmente, também dão erros que às vezes são impensáveis para aquela idade e nível escolar.
E: Sofrer de dislexia não é só trocar algumas letras...
HS: Alguns alunos são atingidos pela dislexia no traçado grafomotor e esse desenho da letra pode ficar ilegível. Outros encontram problemas ao nível da discalculia, embora se saiba cientificamente que há uma menor percentagem de crianças atingidas. A criança pode já ter percebido a tabuada, a divisão, a multiplicação mas não é capaz de decorar as etapas de todas essas operações, baralha tudo. E pode, inclusivamente, não ser capaz de compreender o raciocínio problemático mais elementar. Muito recentemente estive a observar uma criança do 4.º ano para tentar perceber se tinha esses raciocínios mínimos garantidos. Enunciei uma coisa deste tipo: o autocarro leva 50 crianças num passeio da escola, cada criança paga dois euros pelo bilhete, diz-me como é que tu vais obter o resultado final do total dos bilhetes. E a criança somou 50 pessoas com mais dois euros. Esta noção de soma no 4.º ano significa o raciocínio completamente desajustado.
A partir do Decreto-Lei n.º 3/2008, estes casos de dislexia de grau médio ou leve ficaram completamente sem hipótese de serem abrangidos nas medidas especializadas que as escolas podem pôr em prática. Isto significa um elevadíssimo número de crianças com NEE a precisar de apoios especializados, mas não couberam no contingente de 1,8%, 2% no máximo de alunos que os agrupamentos podem eleger para medidas de educação especial, usando a CIF. Como esta estatística exigida às equipas que trabalham nesse âmbito é muito pouca, os alunos com dislexia media ou leve são encaminhados para apoios educativos. Quando o são.
E: Os apoios educativos não surtem efeito nestas crianças?
HS: O apoio educativo é uma estrutura de resposta que não tem serviço especializado. É evidente que não lhes vai fazer mal, mas não se estará sequer a tocar na génese do seu problema. No entanto, são estas crianças disléxicas que não ficam atingidas pela educação especial, que acabam nos apoios educativos. Que fazem o quê com elas? Naturalmente, trabalham para sistematizar conhecimentos. Mas as crianças disléxicas, prioritariamente não precisam disso. Prioritariamente têm de desenvolver pré-competências de leitura, escrita e matemática que - mesmo tendo a criança 8 ou 15 anos de idade - não estão desenvolvidas e deveriam estar adquiridas, muito antes do início das aprendizagens simbólicas [ler, escrever e calcular].
E: É essa a génese do problema?
HS: A génese do problema de uma criança com dislexia está num menor desenvolvimento em áreas do cérebro que são consideradas pré-competências em relação às aprendizagens simbólicas. São pré-competências presentes em qualquer cérebro humano, mas no caso do disléxico algumas não se desenvolveram. Por isso, pode ter uma consciência fonológica baixíssima: não distinguir ão de ou, fe de ve, ou je de che. E, porque não tem essa habilidade - a chamada consciência fonológica - suficientemente desenvolvida no seu cérebro, quando chega à leitura a criança vê o grafema je e o che, sente-se baralhada e atira à sorte. Fica insegura e troca sons, formas e ordem das letras nas sílabas: escreve per, por pre, fla por fal. Tudo porque na base tem dificuldades de consciência fonológica e de memória sequencial. Por exemplo, não consegue perceber que no pre o e aparece em terceiro lugar, logo, o r é intermédio. O cérebro delas não traz esta competência, que em geral qualquer criança tem quando não há dislexia.
Acrescem-se, por vezes, dificuldades nas noções de espaço. As letras organizam-se no espaço numa certa estrutura. Se não existe a noção de espaço na pré-competência do cérebro, a criança vai ter dificuldade em distinguir o b do d o p do q. Mesmo que tenha 12 anos, se nos princípios da escolaridade foi tratado como um aluno qualquer, a dificuldade vai persistir. Ainda que possa ter tido apoios educativos, portanto, professores com formação genérica que vão fazer o seu melhor, mas não sabem como começar tecnicamente, não sabem avaliar as pré-competências. O apoio que dão é igual ao dado a qualquer aluno, mas no caso do disléxico não vai surtir efeito nenhum. Porque o seu cérebro precisa de ser trabalhado nestas pré-competências. Isto significa um conjunto de provas psicopedagógicas de professores especializados.
E: Isso implica uma intervenção precoce?
HS: Costumamos defender que esta triagem deveria começar logo nos cinco anos. Embora a dislexia só se afirme na leitura, no jardim de infância pode haver sinais que as áreas do cérebro daquela criança não estão a funcionar ao nível que deviam estar, para no ano seguinte começar a leitura. Ler exige um bom processamento visual, à velocidade da luz. Porque quando os olhos tocam na palavra têm imediatamente que discernir que letra é aquela que estão a ler. Para fazer imediatamente o significado da palavra que lá está na sua linguagem.
Um cérebro impreparado, com dificuldades viso espaciais, olha para a palavra bode e pode ler dobe. Imagine-se as consequências desta troca no sentido do texto. Outro exemplo: ter a palavra prego escrita no texto, mas como o cérebro lhe faz inversões e espacialmente a criança lê pergo e como o e e o a minúsculos impressos - se virmos bem - são opostos na vertical, mas têm um traçado muito equivalente, a criança olha para a palavra prego e lê pargo. Isto resulta numa dissociação completa do sentido.
E: A dislexia afeta todo o percurso escolar de um aluno?
HS: Pode comprometer o seu projeto de vida inteiro.
Atualmente sabe-se qual a génese do problema: o cérebro do disléxico lê por um caminho feito pelo hemisfério direito, especializado em tudo o que são exigências visoespaciais, mas não nos sons da linguagem. Razão pela qual a dislexia não tem cura. Helena Serra, presidente da Associação Portuguesa de Dislexia (DISLEX), tem explicado isso vezes sem conta, alertando, antes, para o que é possível fazer: "Podemos treinar algumas competências, tornando o aluno mais consciente das suas falhas e armando-o de defesas muito melhores que lhe permitem ir à cautela abordar aquela palavra com determinado grafema ou fonema."
Investigadora na área da educação especial e professora coordenadora jubilada da Escola Superior de Educação de Paula Franssinetti, no Porto, Helena Serra tem dedicado pessoal e profissionalmente a sua vida à compreensão da dislexia. Autora de cadernos reeducativos pedagógicos e com um longo currículo no diagnóstico e intervenção em alunos disléxicos, tem lutado para que o sistema de ensino não comprometa os seus projetos de vida. Por indesculpável desconsideração das suas necessidades de aprendizagem: "Um disléxico não tem a mesma base neurológica de competência porque simplesmente o seu cérebro é especial. Não o podemos culpar, nem acusar de falta de trabalho, pelo contrário, estes alunos trabalham duramente."
Recentemente perdeu a batalha pela possibilidade de os alunos sinalizados com dislexia realizarem os exames nacionais com os apoios educativos previstos no seu plano educativo individual. Medidas "simples", considera a investigadora, mas que permitiriam aos disléxicos algo tão fundamental como iniciar as provas no mesmo ponto de partida dos restantes colegas. Mais tempo para efetuar o exame. Leitura de enunciados. Recurso apenas a uma prova oral ou mesmo uso de meios tecnológicos para substituir a escrita manual. E possibilidade de consulta de tabelas com fórmulas e tábuas. Eram algumas das soluções acordadas durante o ano letivo pelas equipas educativas, que acompanham os alunos disléxicos nas escolas, que o Ministério da Educação e Ciência (MEC) decidiu retirar na época de exames.
Apesar dessa derrota, Helena Serra acredita poder ainda ganhar a guerra contra o desconhecimento da problemática. E como a dislexia entrou na ordem do dia, em nome da associação que preside, pediu uma audição no MEC "para em conjunto pensar alto e partilhar saberes".
Educare.pt (E): Que razões levaram a DISLEX a pôr em causa as regras estabelecidas pelo MEC para a realização dos exames nacionais?
Helena Serra (HS): Não podemos estar de acordo com as regras estabelecidas este ano pelos cortes que implicaram. Primeiro, no ensino básico era possível a realização de exames ao nível da escola, agora só em casos aprovados pelo júri de exames - ultra excecionais -, e não para o problema da dislexia. Segundo, indo a exame - feito ao nível de escola ou nacional -, a criança disléxica, tendo o processo formalmente organizado, tinha direito a várias medidas de adequação da sua avaliação, previstas no seu plano educativo individual (PEI), agora não. Por haver a "Ficha A", um instrumento que descreve o tipo de erros e alterações que aluno faz e informa o corretor para não os pontuar, o MEC veio dizer que os alunos disléxicos já estavam salvaguardados, mas isto significa uma grande confusão. Essa ficha, da minha autoria, foi um instrumento criado há muitos anos para os exames do 12.º ano, desceu para os do 11.º, depois o Governo adoptou-o no 9.º ano e assim por diante, à medida que os exames se foram tornando obrigatórios. Mas uma coisa é a "Ficha A", outra é o elenco de medidas de resposta, em função daquele tipo de erros, que no terreno cada equipa de educação especial vai definir para aquela criança.
E: Que tipo de medidas?
HS: Se a criança interpreta mal, leva mais tempo a ler porque tem de o fazer duas e três vezes para conseguir apanhar o sentido. Qual é a medida que isto precisa? No PEI tem de vir dito que a criança precisa de mais tempo para o teste, porque vai usar várias leituras e isto não se compagina com o relógio e os minutos dados para a realização da prova. Outro exemplo: a criança ainda que lhe sendo dado mais tempo continua a ter dificuldades na interpretação. Qual é a medida no terreno? Leitura do texto pelo professor vigilante em voz alta. É isto que não está previsto pelo MEC. Ou seja: a criança andou apoiada no ano letivo nos testes sumativos, leram-lhe o enunciado, etc., porque o seu PEI assim exigia. E, em abril, a um mês dos exames mudam-se as regras? É contra isso que nós estamos.
E: Nas orientações fornecidas pelo MEC é dito expressamente que o aluno tem de ser capaz de autonomamente fazer o exame. Isto não será uma postura de exigência?
HS: Acredito que haja uma postura do Governo de todo e qualquer estudante ter um nível de Português e de Matemática satisfatório ou nunca mais saímos destes insucessos e destas estatísticas vergonhosas. É uma postura de exigência e entendo que, à partida, essa ideia esteja na base destas alterações. Mas o ministro tem de aplicar a ideia a quem pode responder a ela. Os alunos disléxicos estão preparados para ler. Provavelmente um dia quando forem arquitetos vão fazer um design que outro cérebro sem dislexia não faria. Os disléxicos são mais criativos, têm ideias brilhantes, mas podem escrever a palavra projeto com u na primeira sílaba ou então escrever porjeto. Porque o seu cérebro altera-lhes as coisas deixando-os inseguros sem saber se o que escrevem está bem daquela maneira ou seria de outra.
E: As alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 3/2008 prejudicam as crianças disléxicas?
HS: O Decreto-Lei n.º 319/91 tinha uma linguagem mais permissiva e capaz de englobar conceitos que agora não são englobados. A dislexia é uma necessidade educativa especial (NEE). A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 3/2008, que entrou em vigor a 7 de janeiro, é considerar elegível para medidas de apoio pela educação especial - por professores especializados -, crianças com alterações na sua capacidade de aprendizagem e participação muito mais significativas. Primeiro, diz a lei, de caracter permanente, mas aí não havia problema porque a dislexia é permanente. Segundo, quando a lei diz com impacto significativo na aprendizagem e da participação, também não exclui a dislexia, porque alguns casos são muito gravosos.
Qual foi mesmo o prejuízo? Excluir aquelas crianças cujo tipo de dislexia não é tão acentuado e, portanto, aprenderam a ler, com muita dificuldade, com muito atraso. E que, provavelmente até leem com alguma fluência, mas não interpretam logo o que lêem e têm de ler duas e três vezes para conseguir tomar o sentido da frase. Normalmente, também dão erros que às vezes são impensáveis para aquela idade e nível escolar.
E: Sofrer de dislexia não é só trocar algumas letras...
HS: Alguns alunos são atingidos pela dislexia no traçado grafomotor e esse desenho da letra pode ficar ilegível. Outros encontram problemas ao nível da discalculia, embora se saiba cientificamente que há uma menor percentagem de crianças atingidas. A criança pode já ter percebido a tabuada, a divisão, a multiplicação mas não é capaz de decorar as etapas de todas essas operações, baralha tudo. E pode, inclusivamente, não ser capaz de compreender o raciocínio problemático mais elementar. Muito recentemente estive a observar uma criança do 4.º ano para tentar perceber se tinha esses raciocínios mínimos garantidos. Enunciei uma coisa deste tipo: o autocarro leva 50 crianças num passeio da escola, cada criança paga dois euros pelo bilhete, diz-me como é que tu vais obter o resultado final do total dos bilhetes. E a criança somou 50 pessoas com mais dois euros. Esta noção de soma no 4.º ano significa o raciocínio completamente desajustado.
A partir do Decreto-Lei n.º 3/2008, estes casos de dislexia de grau médio ou leve ficaram completamente sem hipótese de serem abrangidos nas medidas especializadas que as escolas podem pôr em prática. Isto significa um elevadíssimo número de crianças com NEE a precisar de apoios especializados, mas não couberam no contingente de 1,8%, 2% no máximo de alunos que os agrupamentos podem eleger para medidas de educação especial, usando a CIF. Como esta estatística exigida às equipas que trabalham nesse âmbito é muito pouca, os alunos com dislexia media ou leve são encaminhados para apoios educativos. Quando o são.
E: Os apoios educativos não surtem efeito nestas crianças?
HS: O apoio educativo é uma estrutura de resposta que não tem serviço especializado. É evidente que não lhes vai fazer mal, mas não se estará sequer a tocar na génese do seu problema. No entanto, são estas crianças disléxicas que não ficam atingidas pela educação especial, que acabam nos apoios educativos. Que fazem o quê com elas? Naturalmente, trabalham para sistematizar conhecimentos. Mas as crianças disléxicas, prioritariamente não precisam disso. Prioritariamente têm de desenvolver pré-competências de leitura, escrita e matemática que - mesmo tendo a criança 8 ou 15 anos de idade - não estão desenvolvidas e deveriam estar adquiridas, muito antes do início das aprendizagens simbólicas [ler, escrever e calcular].
E: É essa a génese do problema?
HS: A génese do problema de uma criança com dislexia está num menor desenvolvimento em áreas do cérebro que são consideradas pré-competências em relação às aprendizagens simbólicas. São pré-competências presentes em qualquer cérebro humano, mas no caso do disléxico algumas não se desenvolveram. Por isso, pode ter uma consciência fonológica baixíssima: não distinguir ão de ou, fe de ve, ou je de che. E, porque não tem essa habilidade - a chamada consciência fonológica - suficientemente desenvolvida no seu cérebro, quando chega à leitura a criança vê o grafema je e o che, sente-se baralhada e atira à sorte. Fica insegura e troca sons, formas e ordem das letras nas sílabas: escreve per, por pre, fla por fal. Tudo porque na base tem dificuldades de consciência fonológica e de memória sequencial. Por exemplo, não consegue perceber que no pre o e aparece em terceiro lugar, logo, o r é intermédio. O cérebro delas não traz esta competência, que em geral qualquer criança tem quando não há dislexia.
Acrescem-se, por vezes, dificuldades nas noções de espaço. As letras organizam-se no espaço numa certa estrutura. Se não existe a noção de espaço na pré-competência do cérebro, a criança vai ter dificuldade em distinguir o b do d o p do q. Mesmo que tenha 12 anos, se nos princípios da escolaridade foi tratado como um aluno qualquer, a dificuldade vai persistir. Ainda que possa ter tido apoios educativos, portanto, professores com formação genérica que vão fazer o seu melhor, mas não sabem como começar tecnicamente, não sabem avaliar as pré-competências. O apoio que dão é igual ao dado a qualquer aluno, mas no caso do disléxico não vai surtir efeito nenhum. Porque o seu cérebro precisa de ser trabalhado nestas pré-competências. Isto significa um conjunto de provas psicopedagógicas de professores especializados.
E: Isso implica uma intervenção precoce?
HS: Costumamos defender que esta triagem deveria começar logo nos cinco anos. Embora a dislexia só se afirme na leitura, no jardim de infância pode haver sinais que as áreas do cérebro daquela criança não estão a funcionar ao nível que deviam estar, para no ano seguinte começar a leitura. Ler exige um bom processamento visual, à velocidade da luz. Porque quando os olhos tocam na palavra têm imediatamente que discernir que letra é aquela que estão a ler. Para fazer imediatamente o significado da palavra que lá está na sua linguagem.
Um cérebro impreparado, com dificuldades viso espaciais, olha para a palavra bode e pode ler dobe. Imagine-se as consequências desta troca no sentido do texto. Outro exemplo: ter a palavra prego escrita no texto, mas como o cérebro lhe faz inversões e espacialmente a criança lê pergo e como o e e o a minúsculos impressos - se virmos bem - são opostos na vertical, mas têm um traçado muito equivalente, a criança olha para a palavra prego e lê pargo. Isto resulta numa dissociação completa do sentido.
E: A dislexia afeta todo o percurso escolar de um aluno?
HS: Pode comprometer o seu projeto de vida inteiro.
Fonte: Educare
Sem comentários:
Enviar um comentário