"A Inês tem sete
anos e é encantadora. No quadro branco pintou uma paisagem ingénua, por onde
passeia a sua infância. Num traço hesitante surgiram montes e casas e, por
cima, um sol que, por se sentir sozinho, pediu a umas nuvens que lhe fizessem
companhia. Quando acabou, a artista interrogou-me sem palavras, pedindo
aprovação para um desenho colorido com o brilho do olhar, a vivacidade da
expressão e a facilidade do sorriso. Como se pode julgar o que é maior do que
nós?
Não foi fácil
entender o motivo da consulta. Dentro da sala de aula - explicava a mãe - a
Inês sofre uma metamorfose ao revés. A borboleta esfusiante transforma-se num
bichinho amedrontado, que se esconde atrás dos colegas, na esperança de não ser
notado. Tudo o que tem a ver com a escola, mesmo o mais simples exercício, a
leitura ou escrita de um monossílabo, assemelha-se a um difícil número de
trapézio, donde antevê, como eminente, uma queda aparatosa, ponto de exclamação
numa arena sem rede. No entanto, mal toca a campainha para o «recreio», está de
volta a alegria de viver que enche de cor, o nada de um quadro branco. Pouco a
pouco, a Inês deixou de acreditar que era capaz e, na certeza da sua
incompetência, sentiu-se culpada e má, menina que não presta, para quem as
letras e os números têm segredos indecifráveis, enigmas que os colegas resolvem
na ligeireza de um «abre-te Sésamo», tesouros que lhe estão vedados. Porém,
estou certo que lê, como ninguém, a inquietação, (e angústia), que o olhar da
mãe não consegue disfarçar.
Todos os meses
percorro as escolas do país, levando um Evangelho de ideias simples, princípios
em que acredito. As crianças nascem para ser felizes. O seu cérebro tem um
potencial fantástico de curiosidade, espanto, encantamento pela descoberta. Até
à entrada na escola, isto é evidente para todos os pais, que inevitavelmente se
apaixonam por aquele brilhozinho nos olhos, o riso sem disfarce, a alegria sem
nuvens. O dito inesperado, a observação certeira, a coerência com o universo.
Porém, à entrada na escola, para muitos, tudo se transforma. De repente, o
mundo mudou. O afecto ou o sorriso dos adultos parece depender da facilidade
com que se resolvem novos quebra-cabeças, que envolvem gatafunhos a que os
«crescidos» chamam letras e números.
Se, para
alguns, a navegação dessas águas é fácil e fonte de encorajamento e satisfação,
para outros, é um cabo das Tormentas, sem Boa Esperança à vista. As crianças
entristecem, prisioneiras de um aquário onde muitos olhos observam os seus
resultados, realizações, derrotas. A autoconfiança esvai-se lentamente, a ida
para a escola torna-se uma punição. As outras crianças, muitas vezes imitando
os adultos, fazem troça de uma resposta errada, de uma leitura hesitante, de um
ditado com erros, que é exibido, como edital, perante a turma. És preguiçoso -
dizem uns - és um distraído - dizem outros. A insinuação da inferioridade
vai-se tornando progressivamente mais clara, até atingir, por vezes, a
afirmação pura e simples de que se é «burro». Em casa, tentando ajudar, a mãe
senta-se com o seu filho, durante horas intermináveis, na realização dos
trabalhos de casa. Tempo de frustração intensa, que muitas vezes acaba com
lágrimas de uns e de outros. O mundo, para a criança, tornou-se hostil. Para os
pais a perplexidade: como explicar que aquela criança tão «viva» e «esperta»,
se mostre incompetente quando posta à prova no mundo das letras e dos números.
Como explicar que o que parece ter aprendido hoje, seja de pronto esquecido
amanhã? Porquê hoje responder bem às questões colocadas em casa, mas chegado o
dia do teste, tudo pareça ter-se dissolvido num mar de ignorância. Como
explicar o contraste entre a dificuldade de concentração nas aulas e as horas
esquecidas em frente a um jogo de computador, numa vigilância de sentinela? E o
«click» de que os amigos falam e não chega? E a imaturidade que a psicóloga
diagnosticou e não mais se resolve? A explicação surge em regra
responsabilizando a criança: é distraída, preguiçosa, desinteressada. O
discurso não deixa dúvidas, a culpa é da criança: «Porque não pões os olhos na
tua irmã? Porque não és como o teu colega Luís? Sabes os sacrifícios que os
pais fazem para te educar... porque não lhes dás essa alegria?» E a criança
esforça-se mais uma vez, e mais uma vez falha, até à conclusão inevitável: não
presta! E se não presta e não é capaz, porquê tentar? Algumas descobrem a saída
que os poderá tornar populares: ser o «palhaço» da aula, o mais aventureiro, o
que desafia a autoridade. Na infância e na adolescência...
O meu credo é
simples:
- Não existem
crianças preguiçosas, mas sim crianças cansadas do insucesso.
- O insucesso
cria um círculo vicioso que gera mais insucesso, descrença, frustração.
- Os bons
resultados, pelo contrário, aumentam a motivação, a confiança, o êxito.
- As crianças
não acordam de manhã com intenção de falhar, errar, criar angústia em pais e
professores. Se isso acontece, é porque a vida escolar nada lhes trouxe que as
faça felizes ou confiantes.
A minha ideia mais simples, e porventura a mais
importante, é que no mundo das crianças a preguiça não existe."
Nuno Lobo Antunes, "No mundo
das crianças a preguiça não existe", Sinto Muito, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2008
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